Quando falamos em treinamento esportivo, a pior coisa que podemos fazer é não variar os treinos. Essa não variação dos treinos (também chamada de monotonia) prejudica a performance de um ciclista, além de aumentar a chance dele ter overtraining. Porém, se essa variação dos treinos for feita de forma errada, também podemos prejudicar a performance!!
A busca pela melhora da performance no ciclismo exige que nossos treinos sejam dinâmicos e diferentes ao longo do processo de periodização do treinamento (imagina pedalar todos os dias na mesma distância e na mesma velocidade?). Quando não alteramos o treinamento chamamos de monotonia do treinamento, e essa é uma coisa que devemos evitar!
A alta monotonia do treinamento é um dos principais motivos para a estagnação ou até mesmo a piora da performance em ciclistas amadores e profissionais. Para evitar isso, diferentes cargas de treinamento (volume/intensidade) são utilizadas durante a preparação de um atleta.
A forma mais comum de “alterar” essas cargas durante a preparação de um ciclista é, em determinado momento, aumentar o volume e/ou a intensidade do treinamento de ciclismo, e posteriormente reduzir principalmente o volume do treinamento antes de uma competição. Quando aumentamos de forma exacerbada o volume e/ou a intensidade do treinamento, chamamos esse período de treinamento intensificado ou overload em inglês. Já quando, após esse período de treinamento intensificado, diminuímos o volume de treinamento, chamamos esse período de treinamento reduzido, também sendo conhecido como polimento ou tapering em inglês.
TREINAMENTO INTENSIFICADO (OVERLOAD)
Como já foi dito, intensificar os treinos é uma das formas de quebrar a monotonia do treinamento, aumentar o estresse fisiológico e psicológico e, assim, gerar uma adaptação positiva na performance após um posterior período de treinamento reduzido
Esse treinamento intensificado geralmente acontece no período entre 3 a 8 (geralmente) semanas que antecedem uma competição, ou seja, nesse período acontece um aumento tanto no volume quanto na intensidade, esperando-se que aconteça o processo de supercompensação na fase seguinte, o treinamento reduzido ou polimento.
Essa fase de intensificação dos treinos geralmente é caracterizada por um aumento de aproximadamente 20% ou mais na carga de treino, ou seja, aumentamos os treinos e o estresse que o treino provoca em aproximadamente 20% ou mais (podemos aumentar em até 40%) quando comparado com a fase habitual de treinamento. Essa estratégia pode induzir maiores ganhos de desempenho em comparação a carga habitual de treino (Thomas e Busso, 2009).
Le Meura et al. (2012) verificaram em triatletas que 3 semanas de treinamento intensificado seguido de 1 semana de treinamento reduzido promoveu uma redução passageira de performance na fase de intensificação, comportamento este esperado, e posterior uma melhora (supercompensação) de 7,9% após ser feita uma fase de redução do treinamento (taper) quando comparado ao momento inicial dos treinamentos. Ou seja, os atletas diminuíram a performance momentaneamente durante a fase de intensificação (com mais treinos e mais estresse provocado pelo treinos), porém após reduzirem o treinamento, aumentaram a sua performance quando comparado com o período anterior ao inicio do estudo.
É importante lembrar também que esse aumento da sobrecarga (estresse) é chamado de Overreaching (OR), fase anterior ao Overtraining (OT), também conhecido como síndrome do excesso de treinamento. Se você quiser saber mais esse tema clique aqui
TREINAMENTO REDUZIDO (POLIMENTO)
Pois bem, como demonstramos até aqui, é comum no ciclismo fazermos um período de treinos mais intensificado, com aumentos na intensidade e no volume do treinamento. Entretanto, sempre após um período de intensificação dos treinos teremos um periodo de redução dos treinos, chamado de período de polimento ou taper em inglês.
Alguns dos principais objetivos dessa redução do treinamento antes de uma competição são reduzir as fadigas fisiológicas e psicológicas acumuladas com o treinamento em excesso, aperfeiçoar as adaptações ao treinamento e aperfeiçoar o desempenho esportivo.
Entre as principais adaptações positivas fisiológicas e psicológicas com essa redução do volume estão:
- Aumento na testosterona e diminuição do cortisol, melhorando a razão testosterona/cortisol;
- Volume aumentado de eritrócitos e hemoglobina;
- Diminuição da enzima Creatina Quinase (CK);
- Percepção do esforço reduzida;
- Melhora no vigor, humor e qualidade do sono;
- Diminuição da percepção da fadiga, entre outros fatores.
Um fator IMPORTANTE é que um estímulo insuficiente neste período pode resultar em uma perda parcial das adaptações anatômicas, fisiológicas e de desempenho induzidas pelo treinamento. Para que isto não ocorra é fundamental a manutenção/ aumento da intensidade de treinamento nesta fase, além da correta diminuição do volume de treino. É por isso que a intensidade dos treinos nessa fase é mantida ou até aumentada, enquanto que o volume é reduzido entre 40 e 60% comparada a fase de intensificação!
CIÊNCIA APLICADA A FASE DE INTENSIFICAÇÃO E REDUÇÃO DO TREINAMENTO
Relação da intensificação e redução do treinamento com o estresse
Para ilustrar a diferença entre intensificar e reduzir o treinamento, vou citar um estudo de Coutts et al (2007a), aonde dezesseis triatletas do sexo masculino foram distribuídos aleatoriamente em grupos 2 grupos com diferentes volumes de treinamento: Um grupo treinava o volume normal de treinamento que eles já estavam acostumados, e o outro grupo treinava de forma intensificada, ou seja, como uma sobrecarga maior do que aquela que eles estavam acostumados. Ambos os grupos completaram 4 semanas de treinamento, seguido de uma redução no volume de treinamento de 2 semanas (treinamento reduzido). Avaliações fisiológicas foram coletas antes e após as 4 semanas iniciais em ambos os grupos, e também após as 2 semanas de treinamento reduzido. O desempenho foi avaliado semanalmente usando um teste de corrida de 3 km realizado no menor tempo possível, e análises de sintomas de estresse (questionário DALDA). Durante as 4 semanas iniciais, o grupo que treinou de forma intensificada completou ∼290% a mais carga de carga de treinamento que o treinou de forma habitual. Ao longo das 4 semanas, o grupo o grupo que treinou de forma mais intensificada também apresentou maiores respostas ao estresse através do questionário DALDA. Entretanto, após as 2 semanas de treinamento reduzido, esse mesmo grupo foi o que teve maiores melhoras no teste de 3KM. Em contrapartida, o desempenho, marcadores fisiológicos e psicológicos do grupo que treinou de forma habitual permaneceram relativamente inalterados ao longo do período de treinamento de 6 semanas, ou seja, treinar de forma intensificada gerou mais estresse durante a fase de intensificação mas, após reduzir o treino por 2 semanas, esse estresse foi revertido em melhora na performance, diferente do grupo que treinou de forma “habitual”, que não gerou estresse mas também não melhorou a performance. Resumindo, não realizar variações no treinamento pode acarretar em estagnação da performance, enquanto que intensificar o treinamento pode melhorar a performance. Entretanto, para que ocorra essa melhora, uma fase de treinamento reduzido deve ser realizada.
Relação da intensificação e redução do treinamento com parâmetros bioquímicos
Em um interessante estudo de Coutts et al (2007b), os autores avaliaram 6 semanas de treinamento intensificado (overload, maiores volumes de treinamento) e posteriormente 1 semana de treinamento reduzido/polimento (redução do volume de treinamento) em diversos parâmetros bioquímicos, dentre eles os hormônios cortisol e testosterona. Nesse estudo, as análises desses 2 marcadores variaram conforme a fase de treinamento, ou seja, na fase de intensificação e na fase de treinamento reduzido/polimento. A testosterona diminuiu na fase de intensificação, enquanto que na semana de polimento foram encontrados aumentos com a redução do volume de treinamento. Já o cortisol aumentou na fase de intensificação, enquanto que na semana de polimento foi encontrado uma redução. Ou seja, houve uma piora na relação testosterona/cortisol na fase de intensificação do treinamento, com uma melhora com uma semana de treinamento reduzido. Esses resultados são importantes para lembrar que reduções na testosterona e aumentos no cortisol podem provocar piora na recuperação muscular do atleta, piora no sistema imunológico, perda de massa muscular, entre outras adaptações negativas.
Relação da intensificação e redução do treinamento e dor muscular de início tardio
A sensação de dor muscular de início tardio (DMIT) faz parte da rotina de treinos de atletas de diversas modalidades esportivas. Ela é decorrente das microlesões causadas pelo treinamento físico, especialmente quando se realiza ações excêntricas intensas ou uma atividade não habitual. Diferentemente da musculação, aonde alguns praticantes desejam a DMIT em seus treinos visando hipertrofia (o famoso “sem dor sem ganho”), na performance a DMIT não é algo visado tão pouco desejado, pois juntamente com essa DMIT geralmente vem a queda de performance.
Em um estudo de caso, Rønnestad e colaboradores (2016) verificaram que, ao intensificar o treinamento (de 6 para 11 sessões de treino por semana), a sensação de dor muscular de início tardio nos membros inferiores de um atleta profissional de MTB foi de normal para muito intensa. Ou seja, ao se intensificar o treinamento, a dor muscular de início tardio pode aparecer. Nesta mesma pesquisa foi demonstrado também que ao entrar na fase de polimento (redução do volume x manutenção/aumento da intensidade do treinamento) a sensação de dor foi diminuída. Ah, a performance diminuiu na fase de intensificação e aumentou na fase de polimento, como esperado.
È importante lembrar que algumas pessoas têm mais ou menos sensibilidade a dor (por isso o “sem dor sem ganho” não pode ser parâmetro de resultado com os treinos). Se a dor muscular está muito intensa, converse com seu técnico ou fisiologista, entenda em qual fase de treino você está, se ela é esperada ou se está exacerbada para aquela fase e, se precisar, reveja sua planilha de treino!
APLICAÇÃO PRÁTICA
Como vimos, é comum e necessária a estratégia de intensificar o treinamento em um período e reduzir o treinamento após essa intensificação. É importante que se saiba o como fazer isso, levando em consideração fatores como nível de treinamento, dieta, período para a competição, entre outros fatores. A interação da preparação física com os treinos técnicos de ciclismo através das planilhas de treino, aqueles específicos do esporte praticado, também é importante.

Para ajudar a não errar, testes físicos são importantes para monitorar a performance durante todo o período de treinamento, podendo se alterar a estratégia durante o processo de treinamento, caso necessário. Fora a prescrição do treino feito e forma correta, não é mesmo?
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aaron J.Coutts, et al. Practical tests for monitoring performance, fatigue and recovery in triathletes. Journal of Science and Medicine in Sport Volume 10, Issue 6, 2007a.
Coutts A J, et al. Monitoring for overreaching in rugby league players. Eur J Appl Physiol, 2007b.
BUCK KH, et al. Características e monitoramento do tapering no triathlon: uma revisão sistemática. Revista Brasileira de Ciência do Esporte. 2017;25(3):150-158.
Bent R Rønnestad, et al. Short-term performance peaking in an elite cross-country mountain biker. Journal of Sports Sciences · August 2016
Le Meura C, Hausswirth A, Mujika I. Taperinging for competition: a review. Science and Sports. 2012; (27): 77-87.
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